O perigo da censura
POR FABÍOLA FARIAS | 25 DE MAIO DE 2019 | CULTURA DA INFÂNCIA, FORMAÇÃO DE LEITORES, MERCADO EDITORIAL, POLÊMICAS E REFLEXÕES |
Dentre as muitas efemérides em torno do livro, da leitura e das bibliotecas, está o 18 de abril, Dia Nacional do Livro Infantil, estabelecido pela Lei 10.402/2002, em homenagem ao escritor Monteiro Lobato, em sua data de nascimento. Embora se apresente apenas como mais uma data comemorativa a ser lembrada em escolas e bibliotecas, com ações festivas que muitas vezes pouco se voltam para o objeto da comemoração, o Dia Nacional do Livro Infantil pode ser tomado como convite para pensar a potência da literatura na formação das crianças, especialmente em sociedades como a nossa, que se empenham em fazer parecer simples o que é complexo, em evidentes tentativas de tutela e ordenamento moral no campo da Cultura.
Por enquanto, ainda não voltamos a assistir a queimas de livros em praças públicas, apesar da hipótese não poder ser descartada no atual contexto brasileiro. Mas a inexistência de fogueiras, mais inofensivas porque escancaradamente reprováveis e violentas, não significa muita coisa. O medo dos livros, e de tudo que eles podem oferecer, se reinventa todos os dias, em artimanhas veladas, muitas vezes investidas de valores morais e disciplinares, pouco perceptíveis a olhares desatentos. Nada menos que isso são a onda de denúncias e perseguições a livros de literatura nas escolas brasileiras, pretensamente iniciadas por famílias preocupadas com a reverberação das leituras em suas crianças e adolescentes, e os termos cada vez mais limitadores dos editais de compras públicas de livros para bibliotecas escolares, que interditam temas considerados incômodos. Distinta de situações em que livros são analisados como ofensivos a um grupo ou aos direitos humanos porque suas narrativas e imagens contribuem para a naturalização de imaginários opressores, como vem acontecendo em leituras críticas mais recentes sobre parte da obra lobatiana, a patrulha conservadora se dedica ao apagamento de vozes e narrativas que não compõem o repertório e a visão de mundo de determinados grupos, muitos deles ligados a instituições religiosas e partidos políticos.
A reemergência e o recrudescimento de discursos conservadores reverberam diretamente na criação, na produção e no acesso à literatura infantil no país, de diversas maneiras. Em grande medida, escritores, ilustradores e editores são instados a produzir livros que atendam às demandas dos editais governamentais e dos projetos escolares, uma vez que são, Governo e escola, os principais compradores de livros para crianças no Brasil. Mas isso não se restringe às compras com recursos públicos e de livros adotados em escolas, reverberando também no mercado.
A reinvenção dos clubes do livro, com empresas que oferecem serviços de venda de títulos infantis por assinatura, é hoje um grande nicho de mercado e uma forma interessante de fortalecimento da circulação de livros de literatura no Brasil, que conta com ínfimo número de livrarias em relação ao seu território e à sua população. Mas iniciativas como essas, que poderiam ser revigorantes para o sistema livresco – a criação, a edição e a circulação de livros – acabam se tornando, em muitos casos, mais uma engrenagem do sistema. Em busca de êxito comercial e de sua sobrevivência financeira, empresas do ramo vêm se adequando ao comportamento conservador brasileiro em voga, priorizando em sua seleção títulos escolhidos por psicólogos e pedagogos, muitas vezes sem formação específica no campo literário, o que pode significar que os critérios que norteiam as escolhas não são prioritariamente artísticos (em recente edital para aquisição de títulos, uma das maiores empresas do ramo estabeleceu que não aceitaria inscrições de livros que “apresentem seres mágicos, como bruxas, fadas e duendes, como temática central na história”, em clara observância a instituições religiosas que proíbem a leitura de livros dessa natureza. O edital foi refeito após intensa manifestação de escritores, ilustradores e editores na imprensa e nas redes sociais).
O Dia Nacional do Livro Infantil pode ser apenas mais um momento de festa na escola e de postagens nas redes sociais. Mas pode também extrapolar sua aparente irrelevância e fortalecer o debate público sobre a oferta de livros e a educação literária das crianças no Brasil. Para isso, a primeira questão que se coloca é a razão de ser da literatura, especialmente junto ao público infantil; ou, dito de outra maneira, por que ler literatura com e para as crianças?
Embora raramente se dediquem à produção para crianças, muitas vezes considerada menor, a história e a crítica literária acumulam discussões sobre o tema que podem iluminar nossa reflexão. O que nos importa, essencialmente, é pensar nas ofertas que os textos literários podem fazer aos pequenos. As promessas que comumente ouvimos sobre os livros infantis estão, quase sempre, ancoradas em uma concepção prévia e idealizada de infância, que pressupõe padronizações de medos, fantasias, desejos e interesses, inexistentes em sujeitos e grupos sociais concretos. Ainda, em uma percepção dos livros, incluindo os de literatura, como instrumentos de aprendizagem, intrinsecamente vinculados ao desenvolvimento cognitivo, que funcionam como informações adicionais para o incremento da vida escolar. Apesar de não estarem completamente equivocados, estes entendimentos se revelam acanhados frente aos convites da literatura para as crianças.
A leitura na infância, especialmente de textos literários, permite que as crianças compreendam a língua como instrumento de fantasia; não aquela que se restringe a dar voz a objetos ou fazer com que humanos voem e transitem livremente entre o passado e o futuro, mas a que cria condições para a imaginação do outro, daquilo que nos parece estranho. Um conto ou um poema muito curto, uma narrativa por imagens, pode convidar uma criança a se colocar em outro tempo, em outro espaço, a experimentar condições de existência, medos, angústias, desejos e esperanças alheios. Apesar de não existir para ensinar, as crianças (e também os adultos) aprendem com a literatura, uma vez que percebem jeitos de estar no mundo, relações de poder e a potência das palavras para comunicar, ordenar, desorganizar e reinventar a vida tal como a conhecemos. E, claro, a leitura e o contato com os livros, objetos de cultura, desde a primeira infância, as ajudam a compreender e a participar da cultura escrita. Assim, mais que facilitar a aprendizagem das letras, as crianças começam a compreender o que significa ler e escrever, mesmo que sem condições para elaborar tal percepção.
Compreendida dessa maneira, a educação literária das crianças pode ser tomada como projeto de desenvolvimento humano, nos termos que postula o prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen: ampliação de liberdades. Criar as condições para que as crianças tenham acesso e se apropriem do conhecimento e das narrativas produzidas pela humanidade ao longo do tempo e do espaço, desde a primeira infância, faz parte da construção de tempos mais justos. Livros, bibliotecas, boas escolas, professoras e bibliotecárias bem remuneradas e com formação adequada são muito pouco se considerada a terrível desigualdade socioeconômica em que vivemos, mas são uma possibilidade de compreensão do tempo, do espaço e das relações que vivemos.
Ao contrário do que costuma acontecer em momentos de crises econômicas agudas, em que bibliotecas e equipamentos culturais são deixados em segundo plano e até mesmo fechados, é preciso uma resistência intransigente, como fez a alemã Jella Lepman. Viúva, com dois filhos pequenos, fugiu da Alemanha para a Inglaterra para escapar da perseguição e do massacre dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Após a guerra, apesar da resistência e da indignação de seus amigos, Lepman voltou para a Alemanha, com o objetivo de contribuir para a recuperação de mulheres e crianças. Para isso, ela escreveu a escritores, editores, amigos e personalidades de várias partes do mundo, pedindo que enviassem livros. Com um ônibus e poucos livros disponíveis, Lepman passou por vários lugares da Alemanha, lendo para as crianças. Para ela, aquelas histórias as ajudariam a vislumbrar um futuro melhor, a se amparar em meio a tanta destruição e, principalmente, a desejar reconstruir suas vidas, apesar de todo o horror. Esses livros se tornaram a Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, com a maior coleção de livros para crianças e jovens do mundo. Onde falta muito, como na Alemanha do pós-guerra e em tantos lugares do mundo, faltam, especialmente, palavras para dizer da carência, do medo e da desesperança.
IMAGEM: ILUSTRAÇÃO DE ROBERTO INNOCENTI PARA O LIVRO DE SUA AUTORIA ROSA BLANCA
O perigo da censura
Dentre as muitas efemérides em torno do livro, da leitura e das bibliotecas, está o 18 de abril, Dia Nacional do Livro Infantil, estabelecido pela Lei 10.402/2002, em homenagem ao escritor Monteiro Lobato, em sua data de nascimento. Embora se apresente apenas como mais uma data comemorativa a ser lembrada em escolas e bibliotecas, com ações festivas que muitas vezes pouco se voltam para o objeto da comemoração, o Dia Nacional do Livro Infantil pode ser tomado como convite para pensar a potência da literatura na formação das crianças, especialmente em sociedades como a nossa, que se empenham em fazer parecer simples o que é complexo, em evidentes tentativas de tutela e ordenamento moral no campo da Cultura.
Por enquanto, ainda não voltamos a assistir a queimas de livros em praças públicas, apesar da hipótese não poder ser descartada no atual contexto brasileiro. Mas a inexistência de fogueiras, mais inofensivas porque escancaradamente reprováveis e violentas, não significa muita coisa. O medo dos livros, e de tudo que eles podem oferecer, se reinventa todos os dias, em artimanhas veladas, muitas vezes investidas de valores morais e disciplinares, pouco perceptíveis a olhares desatentos. Nada menos que isso são a onda de denúncias e perseguições a livros de literatura nas escolas brasileiras, pretensamente iniciadas por famílias preocupadas com a reverberação das leituras em suas crianças e adolescentes, e os termos cada vez mais limitadores dos editais de compras públicas de livros para bibliotecas escolares, que interditam temas considerados incômodos. Distinta de situações em que livros são analisados como ofensivos a um grupo ou aos direitos humanos porque suas narrativas e imagens contribuem para a naturalização de imaginários opressores, como vem acontecendo em leituras críticas mais recentes sobre parte da obra lobatiana, a patrulha conservadora se dedica ao apagamento de vozes e narrativas que não compõem o repertório e a visão de mundo de determinados grupos, muitos deles ligados a instituições religiosas e partidos políticos.
A reemergência e o recrudescimento de discursos conservadores reverberam diretamente na criação, na produção e no acesso à literatura infantil no país, de diversas maneiras. Em grande medida, escritores, ilustradores e editores são instados a produzir livros que atendam às demandas dos editais governamentais e dos projetos escolares, uma vez que são, Governo e escola, os principais compradores de livros para crianças no Brasil. Mas isso não se restringe às compras com recursos públicos e de livros adotados em escolas, reverberando também no mercado.
A reinvenção dos clubes do livro, com empresas que oferecem serviços de venda de títulos infantis por assinatura, é hoje um grande nicho de mercado e uma forma interessante de fortalecimento da circulação de livros de literatura no Brasil, que conta com ínfimo número de livrarias em relação ao seu território e à sua população. Mas iniciativas como essas, que poderiam ser revigorantes para o sistema livresco – a criação, a edição e a circulação de livros – acabam se tornando, em muitos casos, mais uma engrenagem do sistema. Em busca de êxito comercial e de sua sobrevivência financeira, empresas do ramo vêm se adequando ao comportamento conservador brasileiro em voga, priorizando em sua seleção títulos escolhidos por psicólogos e pedagogos, muitas vezes sem formação específica no campo literário, o que pode significar que os critérios que norteiam as escolhas não são prioritariamente artísticos (em recente edital para aquisição de títulos, uma das maiores empresas do ramo estabeleceu que não aceitaria inscrições de livros que “apresentem seres mágicos, como bruxas, fadas e duendes, como temática central na história”, em clara observância a instituições religiosas que proíbem a leitura de livros dessa natureza. O edital foi refeito após intensa manifestação de escritores, ilustradores e editores na imprensa e nas redes sociais).
O Dia Nacional do Livro Infantil pode ser apenas mais um momento de festa na escola e de postagens nas redes sociais. Mas pode também extrapolar sua aparente irrelevância e fortalecer o debate público sobre a oferta de livros e a educação literária das crianças no Brasil. Para isso, a primeira questão que se coloca é a razão de ser da literatura, especialmente junto ao público infantil; ou, dito de outra maneira, por que ler literatura com e para as crianças?
Embora raramente se dediquem à produção para crianças, muitas vezes considerada menor, a história e a crítica literária acumulam discussões sobre o tema que podem iluminar nossa reflexão. O que nos importa, essencialmente, é pensar nas ofertas que os textos literários podem fazer aos pequenos. As promessas que comumente ouvimos sobre os livros infantis estão, quase sempre, ancoradas em uma concepção prévia e idealizada de infância, que pressupõe padronizações de medos, fantasias, desejos e interesses, inexistentes em sujeitos e grupos sociais concretos. Ainda, em uma percepção dos livros, incluindo os de literatura, como instrumentos de aprendizagem, intrinsecamente vinculados ao desenvolvimento cognitivo, que funcionam como informações adicionais para o incremento da vida escolar. Apesar de não estarem completamente equivocados, estes entendimentos se revelam acanhados frente aos convites da literatura para as crianças.
A leitura na infância, especialmente de textos literários, permite que as crianças compreendam a língua como instrumento de fantasia; não aquela que se restringe a dar voz a objetos ou fazer com que humanos voem e transitem livremente entre o passado e o futuro, mas a que cria condições para a imaginação do outro, daquilo que nos parece estranho. Um conto ou um poema muito curto, uma narrativa por imagens, pode convidar uma criança a se colocar em outro tempo, em outro espaço, a experimentar condições de existência, medos, angústias, desejos e esperanças alheios. Apesar de não existir para ensinar, as crianças (e também os adultos) aprendem com a literatura, uma vez que percebem jeitos de estar no mundo, relações de poder e a potência das palavras para comunicar, ordenar, desorganizar e reinventar a vida tal como a conhecemos. E, claro, a leitura e o contato com os livros, objetos de cultura, desde a primeira infância, as ajudam a compreender e a participar da cultura escrita. Assim, mais que facilitar a aprendizagem das letras, as crianças começam a compreender o que significa ler e escrever, mesmo que sem condições para elaborar tal percepção.
Compreendida dessa maneira, a educação literária das crianças pode ser tomada como projeto de desenvolvimento humano, nos termos que postula o prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen: ampliação de liberdades. Criar as condições para que as crianças tenham acesso e se apropriem do conhecimento e das narrativas produzidas pela humanidade ao longo do tempo e do espaço, desde a primeira infância, faz parte da construção de tempos mais justos. Livros, bibliotecas, boas escolas, professoras e bibliotecárias bem remuneradas e com formação adequada são muito pouco se considerada a terrível desigualdade socioeconômica em que vivemos, mas são uma possibilidade de compreensão do tempo, do espaço e das relações que vivemos.
Ao contrário do que costuma acontecer em momentos de crises econômicas agudas, em que bibliotecas e equipamentos culturais são deixados em segundo plano e até mesmo fechados, é preciso uma resistência intransigente, como fez a alemã Jella Lepman. Viúva, com dois filhos pequenos, fugiu da Alemanha para a Inglaterra para escapar da perseguição e do massacre dos judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Após a guerra, apesar da resistência e da indignação de seus amigos, Lepman voltou para a Alemanha, com o objetivo de contribuir para a recuperação de mulheres e crianças. Para isso, ela escreveu a escritores, editores, amigos e personalidades de várias partes do mundo, pedindo que enviassem livros. Com um ônibus e poucos livros disponíveis, Lepman passou por vários lugares da Alemanha, lendo para as crianças. Para ela, aquelas histórias as ajudariam a vislumbrar um futuro melhor, a se amparar em meio a tanta destruição e, principalmente, a desejar reconstruir suas vidas, apesar de todo o horror. Esses livros se tornaram a Biblioteca Internacional da Juventude de Munique, com a maior coleção de livros para crianças e jovens do mundo. Onde falta muito, como na Alemanha do pós-guerra e em tantos lugares do mundo, faltam, especialmente, palavras para dizer da carência, do medo e da desesperança.
IMAGEM: ILUSTRAÇÃO DE ROBERTO INNOCENTI PARA O LIVRO DE SUA AUTORIA ROSA BLANCA