Como os livreiros de Timbuktu conseguiram salvar manuscritos de 800 anos, que comprovam a existência de Idade Média documentada na África, em meio à desolação da guerra


Não foram. Pelo menos não integralmente. Quando o prefeito dava essa declaração, boa parte dos tomos e pergaminhos de mais de meio milênio que versam sobre astronomia e medicina e guardam registros de música e poesia africanas já estava guardada em Bamako. O trabalho hercúleo e os riscos assumidos por Haidara e seus colegas se justificam. Nas obras salvas estão os registros dos últimos 800 anos de história da cidade de Timbuktu, entreposto comercial e cultural africano há quase um milênio e patrimônio mundial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desde 1988.
Além de valiosos documentos históricos, eles também têm grande importância por comprovarem que no continente africano a história dos povos locais também era registrada e difundida pela escrita, e não apenas de forma oral. “Reconheço que transportar manuscritos na mala de um carro não é o ideal”, diz José Luís Goldfarb, professor de história da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e especialista em políticas públicas de incentivo à leitura. “Mas, nessas horas, vale tudo para salvar um patrimônio rico como esse.”
Os livreiros de Timbuktu sabem disso. Acostumados com a história tumultuada do país, que coleciona guerras e conflitos, eles aprimoraram, através dos séculos, técnicas de resgate e proteção do inestimável acervo da cidade. Desde o final da colonização francesa no Mali, em 1960, ele não fica todo estocado em um lugar, mas sim dividido em cerca de 70 bibliotecas da região. Quando a situação se complica e a opção pelo resgate não existe mais, as maiores relíquias costumam ser embaladas e guardadas em caixotes de madeira selados e enterrados na areia do deserto. As cavernas também são usadas como esconderijo. Mas, com o conflito que se desenhou no final de 2012, a opção pela retirada do acervo da cidade pareceu mais sensata a muitos bibliotecários.
Isamel Didié, por exemplo, último descendente da dinastia Kati – há pelo menos 500 anos no Mali –, fugiu do país em direção à Europa no final de 2012 e levou consigo o que podia da Fondo Kati, que guardava mais de sete mil documentos sobre a presença islâmica na península ibérica. Depois de passar em fuga por França e Suíça, ele se fixou, temporariamente, em Jaén, no sul da Espanha. Suas preocupações, porém, continuam no Mali. “Não creio que temos perdido documentos”, diz, esperançoso. “Mas tivemos que espalhar em bibliotecas o que continuou por lá”, disse ao jornal espanhol “El País”.
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