segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

A informação é frágil como o Amazonas


A informação é frágil como o Amazonas
Na era do digital, um dos problemas é saber o que guardar, onde guardar e como guardar os dados produzidos. O que até aqui era uma função do Estado está a ser um negócio para as multinacionais de tecnologia.

José Afonso Furtado, o ex-director da Biblioteca de Arte da Fundação Calouste de Gulbenkian, instituição onde integra o Conselho Consultivo do Programa “Leitura Digital”, tem publicado ao longo dos anos várias obras sobre o futuro do livro.
Em Uma Cultura da Informação para o Universo Digital, que acaba de ser publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, reflecte sobre o problema da iliteracia e a chamada “fractura digital”, provocada pelas dificuldades de alguns na interacção com as novas tecnologias. Para o especialista, “são desafios que exigem de cada um de nós, das diversas instâncias sociais e dos poderes públicos uma nova abordagem ética, uma ética da informação”. Nesta mudança de paradigma, em que há uma avalancha de produção de informação, considera que as bibliotecas, mais do que nunca, são necessárias.

Como é que surgiu a ideia deste livro?
Foi uma encomenda da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Não exactamente sobre este tema, mas sobre as questões do livro em geral. Como já escrevi centenas de páginas sobre a temática do livro e a sua transição para o paradigma digital, pareceu-me mais útil reflectir sobre problemas que começam a ganhar relevância em termos mediáticos - a organização, produção, armazenamento, transmissão do conhecimento.
O que me interessava era saber como é que se está a alterar a produção, a dimensão, a distribuição e a salvaguarda dos dados. Perceber que tipo de saberes e habilidades é que as pessoas devem ter para terem um pensamento não proletarizado face ao novo ambiente informacional. E discutir com mais profundidade a noção de literacia de informação.
Para chegar aí, tive de explicar qual era a dimensão do problema e, para isso, tive de fazer a recolha das tentativas de medir a produção, o consumo e a circulação de informação. Todos os relatórios são americanos.

Não existem dados portugueses ou sequer europeus?
Não. É nos Estados Unidos que fica normalmente a sede das firmas que fazem esses estudos. O primeiro foi feito em 2000 pela universidade de Berkley, na Califórnia. Foram os primeiros a usar medidas computacionais para medir todos os dados. Ou seja, como não havia um dominador comum [para a quantidade de informação no mundo] passaram tudo para terabytes. A partir daí analisaram tudo como se fosse terabytes e isso tornou-se a regra desses estudos. O que não quer dizer que os estudos norte-americanos levem a políticas correctas. Mas, pelo menos, podemos saber com o mínimo de fiabilidade o que se passa.

E o que é possível saber?
Os jogos de computador, por causa dos gráficos complexos, são agora 95% da informação produzida. E a seguir é o vídeo. Podemos pensar que se produzem um milhão de livros por ano e que isso é uma carga enorme. Mas não. É 0,04% da informação produzida. Não tem significado. Ouvir rádio continua a ter muita importância, mais do que eu pensava. As actividades na Internet são muito menos significativas em termos de quantidade de informação em bytes do que se poderia pensar.

Percebe-se a utilidade de estudos sobre hábitos de consumo de informação. Mas qual é a utilidade de se saber qual a quantidade de informação produzida em todo o mundo?
É o problema do big data [grandes e complexos conjuntos de dados] e dos centro de dadoss. O que me interessa perceber são os jogos de poder e como isso pode prejudicar o consumidor. Desde de 2007 já não existe capacidade para armazenar tudo que é produzido.

Não é normal que haja dados que não são armazenados?
Os dados só por si não servem para nada, só servem se forem transformados em informação. O que não sabemos é se alguns dados podem vir a ser transformados em informação daqui a algum tempo. Há dados que hoje não nos servem, mas não sei se daqui a um ano servem. Pode haver uma pergunta a que esses dados respondem.
O que me preocupa é este progressivo desfasamento entre aquilo que se produz e aquilo que se pode armazenar. Porque aí é que vai estar o grande problema deste século.
Neste momento está tudo a construir silos e centro de dadoss. Havia uma comissão [em Portugal] a trabalhar nisso e ninguém sabia: o Grupo de Projecto para as Tecnologias de Informação e Comunicação. Mas as conclusões que foram publicadas no Diário de Notícias [Estudo do Governo entrega segredos de Estado a privados] já tinham algumas hipóteses de solução, umas das quais era meter tudo numa empresa privada porque saía mais barato. Informação sensível! Vamos pôr isso num centro de dados privado?

Onde acha que esse material deve estar guardado?
O que é certo é que quem tem dinheiro para construir centro de dados gigantescos são as empresas privadas, que fazem disso negócio. Mas na Holanda, é proibido os dados do Estado serem armazenados em empresas privadas. A UE não tem nenhuma directiva sobre isso, mas aconselha a que não se faça. Não tenho uma teoria da conspiração.
Passei estes anos todos a ouvir dizer que quem detém a informação tem poder. Se o Google tiver a informação tem poder. Essa é a minha preocupação: é que o poder não passe de uma instância que apesar de tudo é legitimada pelo voto para uma empresa cujo objectivo é ter lucro e não servir os cidadãos.

Bibliotecas são mais necessárias

Em todo o livro há uma preocupação com os metadados da informação digital. É razoável neste paradigma digital ter esta ideia de que vamos catalogar e criar metadados para a maioria da informação digital produzida? Ou vamos ter de confiar na indexação dos motores de busca?
Essa indexação não é feita segundo nenhum modelo controlado. Quando se está a catalogar, está-se a utilizar um sistema. Mesmo os sistemas de catalogação universais não são os mesmos, mas há formas de os ligar e conseguir obter informação.

É por causa destas preocupações que diz ser necessária uma ética da informação?
A ética da informação é exactamente tudo o que temos estado a falar. No livro, aplico à infosfera as preocupações que é comum ter-se com a biosfera. Só que a informação não é considerada um objecto tão grave e tão frágil como é o Amazonas ou o aquecimento global. Mas é a mesma coisa, porque a dificuldade vai ser escolher o que se guarda e o que se deita fora, o que deve ficar conservado e como. Há a preocupação de não perder informação ao mudar de suportes e, sobretudo, de saber como é que vamos encontrar o que queremos e como é que o vamos obter. Por exemplo, se os livros das bibliotecas estiverem no Google (que não era para fazer negócio, mas agora já há a Google Books), a certa altura quem controla isso tudo é o Google e, se as bibliotecas tiverem tendência para acabar, as pessoas vão pagar tudo aquilo que normalmente não pagam. Descansa-vos que a informação nos livros esteja na posse da Google? Os Estados estão a ter uma atitude perigosíssima, que é dizer que as bibliotecas são cada vez menos necessárias e acabar com elas.

Porque é que na era digital as bibliotecas continuam a ser tão necessárias quanto eram?
São mais necessárias. São a única maneira de ter um ambiente informacional onde se podem fazer pesquisas controladas.

Controladas como? Um repositório controlado? Com informação fiável?
E toda a informação que lá está, em princípio, tem metadados e é encontrável. Se for à Internet, metade dos livros produzidos em self-publishing nos EUA não tem ISBN sequer. E a não ser que confiemos que há um deus bom, isto vai multiplicar-se. Esse desfazamento entre capacidade de produção de bens digitais e a capacidade de armazenamento põe uma série de problemas. O consumidor nunca se preocupou com o armazenamento da informação até entrarmos num paradigma digital. Nunca se preocupou se a Biblioteca Nacional tinha espaço ou não. O desfazamento entre a produção e a capacidade de armazenamento só tem duas soluções: mecanismos tecnológicos e epistemológicos. Mas não podem ser só tecnológicos. Por isso é que digo que as bibliotecas não podem ser dispensadas. Porque os algoritmos mudam. Os algoritmos do Google estão constantemente a mudar.

Não podemos dizer que estão a melhorar?
Não. Estão constantemente a melhorar para o Google. Eles têm dados sobre nós e se cada um de nós fizer uma pergunta semelhante, temos resultados diferentes. É a personalização da informação. Quer dizer que a certa altura acabamos por estar sozinhos no nosso universo. Sou muito desconfiado em relação às empresas tecnológicas, porque o negócio delas não é servirem-me, é servirem-se de mim para ganhar dinheiro.

A ética da informação é incompatível com negócio?
É pelo menos uma nova ética que tem de ser pensada.

Tecnologia atirada para as aulas

Aborda de passagem a distribuição de computadores Magalhães no ensino português. Considera que foi uma medida correcta?
Foi de propósito. Quando comecei a escrever o livro era uma questão demasiado política. E depois, não há o menor feedback de qual foi o resultado. A maneira mais fácil de resolver este problema [da tecnologia nas escolas] é não o pensar. É arranjar alguma firma que quer dizer “nós temos computadores nas salas de aula”. Depois ainda ganham os intermediários que é suposto darem assistência a esses computadores. Os professores ficam a olhar para aquilo, porque a maior parte deles não tem sequer uma cultura de computadores. E os miúdos ficam todos contentes, porque, provavelmente, lhes puseram nas mãos uma coisa que lhes vai permitir mandar mensagens e jogar jogos.

E eventualmente estudar e trabalhar.
Eventualmente. Mas quando se pensa nisso é preciso saber que materiais didácticos há e se são adequados àquele aparelho. Não vi nenhum estudo desses. O que se está a passar nos EUA, e que já está a passar para a Europa, é que a partir de agora todos os livros são electrónicos, não há papel nas aulas. A Itália acabou de fazer isso. É uma decisão absolutamente infundamentada e irresponsável, mas muito fácil.
O meu problema não é o Magalhães. O problema é o Estado, sem fundamentos, sem qualquer estudo, sem um argumento racional, sem dados, atirar coisas para dentro das salas de aulas. O Magalhães foi isso. Na América atiraram com o Kindle.

Mas não há um impacto positivo em colocar essas ferramentas nas salas de aula, sobretudo quando essas salas têm alunos que já estão habituados a ferramentas digitais?
Não estão. Neste ano, só encontrei estudos que acrescentam dados e fundamentam o que eu digo: a teoria dos nativos digitais é uma verdadeira treta. E é muito boa para as empresas tecnológicas. Não sou um ludita. Mas as pessoas atingiram um delírio tal com as novas tecnologias, que perderam a distância crítica. O Estado deve saber que sistema educativo é que quer. Eu não tenho dúvidas de que tem de integrar as tecnologias da informação. Agora tenho dúvidas sobre a maneira como estão a ser integradas.
Por isso, é que se fala em literacia da informação. É preciso saber como é que funcionam as máquinas com que estamos a trabalhar. Hoje até se defende que faz parte da educação mínima das pessoas saberem o mínimo de código [informático]. Se mudamos de paradigma e o ensino fica no paradigma anterior, há algo que não está a funcionar. Acho que estamos a ir pela solução mais simples, em vez de se pensar nas coisas antes. Uma biblioteca ou uma escola, antes de se porem a comprar tablets, ou leitores de livros electrónicos, ou o que seja, têm de pensar para que é que os querem lá.

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