quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Receita de bibliotecário

Receita de bibliotecário

Edson Nery da Fonseca
Parafraseando a ”Receita de Mulher” de Vinícius de Moraes, define-se o perfil ideal do bibliotecário nos tempos atuais
JustificaçãoEm vez do artigo técnico solicitado por esta nova revista, preferi apresentar minha receita de bibliotecário, assim como Vinícius de Moraes escreveu sua Receita de Mulher (1) e o poeta português Reynaldo Ferreira a Receita para fazer um Herói (2).
Como, infelizmente, não sou poeta, apresento esta receita não em versos, mas em prosa: uma prosa cuja única virtude será a de não ser perpretada inconscientemente, como a do conhecido personagem de Molière.
Que os bibliotecários mais jovens continuem dissertando sobre processos técnicos, deixando aos mais velhos a elaboração que só a idade enseja – do que pode ser considerado como uma filosofia ou – se a palavra parecer pretensiosa uma teorização da biblioteconomia.
Sem teoria, aliás, qualquer técnica deixa de ter sentido, como demonstrou Ortega y Gasset em Meditación de la técnica. Esta receita de bibliotecário pretende ser modesta contribuição a uma possível meta-biblioteconomia, já que, segundo Jean Guitton, “entramos numa época em que as últimas questões não são somente físicas, sociais ou políticas, mas metapolíticas, metafísicas, meta-estratégicas” (3).
ReceitaComeço logo parafraseando Vinícius de Moraes, cuja Receita de Mulher assim se inicia: “As muito feias que me perdoem, mas beleza é fundamental”. Os bibliotecários mais ignorantes que me perdoem, mas cultura é fundamental.
Estarei sendo, com esta declaração inicial, derrotista ou desestimulador? Creio que não, porque a ausência de cultura, ao contrário da falta de inteligência, pode ser preenchida em qualquer idade, tanto nos cursos regulares como autodidaticamente.
Tome-se, portanto, uma pessoa culta e acrescente-se a essa cultura noções de organização e administração, em geral, e de serviços de biblioteca e de documentação, em particular. Para evitar os habituais mal entendidos, devo logo esclarecer o que entendo por serviços de biblioteca e de documentação: compete ao primeiro reunir, organizar e difundir documentos de qualquer natureza, cabendo ao segundo resumir, codificar, traduzir e/ou reproduzir as informações contidas em documentos textuais.
Acrescentem-se às noções supra indicadas o conhecimento da história do livro, a teoria e a prática da bibliografia, a utilização das obras de referência e as táticas de relacionamento com os leitores. Um pouco de introdução à engenharia de sistemas e ao processamento de dados é útil para que o bibliotecário não se deixe iludir pelos cantos de sereia dos vendedores de equipamentos mecânicos e eletrônicos.
Exija-se do bibliotecário que ele tenha, tanto nos conhecimentos gerais como nos profissionais, simpatia pessoal por uma das ciências, das letras ou das artes, bem como por um dos vários ramos em que se subdividiu a biblioteconomia: administração, classificação, catalogação, mecanização de processos, bibliografia, serviços informativos, etc.
É certo que as bibliotecas gerais continuarão coexistindo com as especializadas, pois nem só de especializações vivem os homens. Mas, tanto quanto as especializadas, as bibliotecas gerais necessitam de bibliotecários capacitados ao atendimento eficiente de leitores dos mais diferentes níveis culturais e dos mais variados biotipos. Especializados, portanto. O bibliotecário geral é hoje uma utopia pretensiosa.
Dentro da biblioteconomia, as especializações se impõem pela diferente natureza dos serviços oferecidos pelas bibliotecas. Tais serviços devem ser escolhidos de acordo com o temperamento de cada um. Os apolíneos fiquem nos processos técnicos e administrativos, deixando os serviços informativos para os dionisíacos (4). Assim como no céu, segundo a promessa de Cristo, “há muitas moradas”, na biblioteca – perdoai a comparação – há lugar para todos os temperamentos.
Estabelecidas as condições básicas supra indicadas, escolhido o tipo de biblioteca nacional, pública, universitária, especializada, escolar, infantil, etc. – e a natureza do serviço – administrativo, técnico ou informativo – deve o bibliotecário estar permanentemente atualizado em relação ao que se passa no mundo, no seu país e no campo de sua atividade profissional.
Para isso é indispensável a leitura das publicações periódicas. Ler pelo menos dois jornais por dia – um local e outro nacional, dois semanários – um nacional e outro estrangeiro – e, também, como exigência mínima, duas revistas profissionais.
A escolha dessas publicações depende, naturalmente, de circunstâncias locais e de preferências pessoais. Deixando os órgãos locais a critério de cada um, indicarei o Jornal do Brasil como o de caráter nacional mais acentuado (há quem prefira O Estado de São Paulo); dentre os semanários nacionais, Veja tornou-se, indiscutivelmente, o mais completo e menos frívolo; quanto aos estrangeiros a escolha é mais ampla: Time (já ultrapassado, para alguns, por Newsweek) , L’Express ou The Economist, conforme a americanofilia, francofilia ou anglofilia de cada um.
A leitura quinzenal de Library Journal e a bimestral do Boletin de la UNESCO para las Bibliotecas e o mínimo que podemos exigir para uma atualização profissional permanente. De acordo com o tipo de biblioteca e a natureza do serviço, a consulta regular de outras revistas especializadas e indispensável. Para o bibliotecário de referência, por exemplo, o Wilson Library Bulletin é essencial, pelas recensões mensais de obras de referência recentes.
Não se concebe num bibliotecário o que é igualmente inamissível em qualquer pessoa culta, isto é, que não esteja sempre lendo um livro. É aconselhável alternar a leitura de obras recentes de biblioteconomia com as de ciências, letras ou artes, segundo a inclinação pessoal de cada um. Os que não possuem cursos sistemáticos numa das referidas áreas, podem guiar-se pelas inúmeras listas dos livros fundamentais, como, por exemplo, The reader’s adviser (5), Classics of the Western World (6), Que lire (7), Lá bibliotheque de l’ónriête honnne (8), La bibliotheque ideale (9), The world’s best books (10), Pour une bibliótheque ideale (11), The reader’s guide (12) e outras.
Dizem que o bibliotecário é aquele que conhece todos os livros, sem ter lido nenhum. A biblioteconomia e, sobretudo, a bibliografia, obrigam, de fato, a esse conhecimento de autores, títulos e editores, sem o dos respectivos conteúdos, assim como os que não sabem nadar rondam as piscinas ou o oceano, sem ousar o mergulho.
Que o bibliotecário leia muito, mas, como Vinícius de Moraes prescreveu em sua receita “um mínimo de produtos farmacêuticos”, eu imploro um mínimo de citações bibliofílicas. A Misión del Bibliotecário, de Ortega y Gasset – leitura essencial! (13) – dispensa qualquer frase em louvor da biblioteca e do bibliotecário. É o que de mais profundo se escreveu até hoje sobre o assunto.
Cinema ou teatro pelo menos uma vez por semana, exposições ou concertos no mínimo uma vez por mes, asseio pessoal, cabelos penteados, roupas e sapatos sempre limpos. Concluindo esta receita com outra paráfrase de Vinícius de Moraes, direi que o bibliotecário deve ser, em princípio, inteligente, mas, em caso contrário, “que tenha a atitude mental dos altos píncaros”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. MORAES, Vinícius de. Receita de mulher. In: – Antologia poética. 3. ed. rev. e aum. Rio de Janeiro, Ed. do Autor, 1960, p.232-234.
2. FERRE IRA , Reinaldo. Receita para fazer um herói. In: – Poemas. 3. ed. Lisboa, Portugália, 1970, p. 21.
3. GUITTON, Jean. Guerra e suicídio. Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 24 dez. 1972, Caderno Especial, p. 5 (traduzido dá ReVliede nefense Nationale.
4. “Apolíneo ” e ”Dionisíaco”(ou Fáustico) são caracterizações mais ou menos correspondentes a “introvertido” e “extrovertido”, conforme Ruth Benedict em sua conhecida obra Pattern of culture (New York, Houghton Miff1in, 1934).
5. HOFFMAN, Hester R. The reader’s adviser. 10. ed. rev. and en1. New York, R. R. Bowker, 1964. xxii, 1.292 p. (1. ed.: 1921~com o título -The bookman’s manual).
6. AMERICAN LIBRARY ASSOCIATION. Classics of the Western world. Chicago, 1927. 128 p. (3. ed., 1943).
7. CAPART, Jean. Que lire? Anthologie d’appreciations des méilleurs livres des 1itteratures anciennes et modernes. Bruxelles, Vromant, 1945. 2 v.
8. WIGNY, Pierre. La bib1iotheque de l’honnête homme. 2. ed. Bruxe11es, Ad. Goemaere; Paris, Presses Universitaires de France, 1949. 675 p. (1. ed., 1945).
9. LANNOYE, Charles. La bibliotheque ideale. Paris, editions Universitaires, 1950. xvi, 236 p. (2. ed. mlse à jour: Paris, 1951). Com o mesmo título, existe uma obra de Franz Weyergans (Paris, ~ditions Universitaires, 1957).
10. DICKINSON, Asa Don. The world’s best books, Homer to Hemingway. New York, H. W. Wilson, 1953. 484 p.
11. QUENEAU, Raymond, Pour La bibliotheque ideale. 4. ed •. Paris, Gallimard, 1956. 318 p.
12. WlLLlAMS, William E., ed. The reader’s guide. London , Penguin, 1960. 351 p.
13. ORTEGA Y GASSET, Jose. Misión del bibliotecário. ln: – Obras completas. 2. ed. Madrid, Revista de Occidente, 1951. t. V, p. 229 e segs. Outras edições: Misión del bibliotecário X otros ensayos afines. Madrid, Revista de Occidente, 1962, (2. ed., 1967) (Colecciôn El Arquero). El libro de Ias misiones. 5. ed. Buenos Aires, Espasa-Calpe Argentina, 1950. p. 11-50 (Colecciôn Austral, 101)
Edson Nery da Fonseca * Professor Titular da Universidade de Brasília. Diretor da Faculdade de Estudos Sociais Aplicados (à época)
Cad. Bibliotecon., Recife, (1): 3-10, jul. 1973
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